quarta-feira, 17 de janeiro de 2018

O sétimo filho.




Meio-dia, o sol escaldante, uma multidão descontrolada, e cá estou eu, com a corda no pescoço, esperando o padre rezar o "pai nosso" para minha sentença de morte. E por que isso tudo?
 Dois dias atrás, também não saberia te dizer o por quê, e, exceto pelo fato de que os cavalos não param de gritar e se debater nos estábulos (como se sentissem o mal que carrego), eu diria que é porque sou o sétimo filho da sétima filha, e cresci a vida toda ouvindo as pessoas dizerem que meu pai é o próprio diabo.
 Por causa disto, passei a vida todo recluso ao porão dos meus pais, praticamente sem contato com as pessoas. Vez ou outra eles me levavam à cidade para me comprar roupas ou algum brinquedo, não que eles me odiassem, eu conseguia sentir nos olhos deles, era medo, puro e irracional, o mesmo medo que o porco sente quando o açougueiro se aproxima com o cutelo, pronto para fazê-lo sangrar até o amargo fim; passaram-se alguns anos, e a falta de luz conferiram-me um ar de doente, minha pele era pálida, como uma madrugada de inverno, e meus olhos, escuros tão escuros e profundos quanto o abismo que habita o interior de cada ser humano. Ao completar 14 anos, meus pais já não acreditavam que eu fosse uma ameaça, e deixaram que eu me mudasse para a parte de cima da casa, onde eu tinha um quarto com uma estante de livros (modesta, admito) e uma janela grande, a qual me serviu muito bem para admirar o sol se pondo e a lua subindo...
 Ah, a lua! Tão bela e resplandecente a beijar minha face nas noites mais solitárias, com sua mágica fascinante, como uma sereia cantando em meus ouvidos "Venha pra mim, meu doce filho", mas então eu me lembrava das histórias, e sempre recusava seu chamado; este, que foi ficando cada vez mais atraente e sedutor, até que não pude recusá-lo e entreguei-me de corpo e alma ao doce cântico da Nêmesis do dia, sentindo minha pele rasgando e meu sangue fervendo, a adrenalina injetada em cada parte do meu corpo; a sede de sangue crescendo em meu âmago. Mal pude controlar o êxtase que corria dentro de mim, enquanto dilacerava minhas irmãs e meus pais, bebendo e festejando sob o sangue quente, ouvia os animais guinchando desesperadamente tentando fugir da minha presença aterradora.
 Rendi-me à besta, destruí, dilacerei e dancei sob os cadáveres mutilados de meus familiares sob a luz pálida da mãe da noite, alimentei-me do sangue e da carne que me trouxe ao mundo, e então corri livre pela noite, cruzei sete cidades, sete cemitérios e sete igrejas. E então, ao amanhecer, adormeci, acordei confuso, sujo e cansado, banhado em sangue e vísceras, não tardou muito até o xerife me encontrar junto com seus homens e me trazer à forca.
 A corda apertando meu pescoço, as pessoas me apedrejando, e esconjurando minha presença e o Padre, logo após rezar o pai nosso virou-se para mim e disse: - Esqueceu-se do rosto do seu Pai, bastardo do diabo? Pois hoje, em nome do único e verdadeiro Deus, envio você de volta para o lugar de onde veio, cria do inferno!
 - Adeus, vida.



(Fernando M.)