sábado, 15 de novembro de 2025

Ao homem que portava a luz.




Atravessou a curta vida,

como quem caminha sobre um lago de vidro:

cada passo foi frágil,

cada movimento, preciso,

e ainda que seus reflexos fossem ternos,

não mensuravam a dor em seus gestos.


Você foi assim:

Trazia no rosto um sorriso quentinho,

como aquele sol numa manhã de inverno,

como as gentilezas raras que sobrevivem aos dilúvios,

e que nas costas, carregava mundos,

música, histórias, ideias que brilhavam como estrelas,

nossas constelações particulares.


Eu era criança

mas a infância tem seu próprio modo de lembrar:

lembra pelo afeto,

pelo tom gentil da voz,

pelo sorriso ao colocar uma música dançante no disco,

você existia com delicadeza,

como se fosse possível amparar um universo inteiro

em seu abraço.


O tempo passou,

a saudade aprendeu a caminhar comigo;

outrora, você era um senhor,

agora eu sou mais velho que você quando partiu.

Não pesa mais como antes,

mas pulsa, uma constante,

um lembrete brando de que há presença

enquanto eu carregar em meu peito

sua presença.


Hoje não mais busco compreender,

nem tento costurar os retalhos para entender.

Assim, guardo o que ficou:

o silêncio bonito entre uma música e um sorriso,

os domingos de manhã assistindo desenhos e joguinhos,

a força discreta da sua ternura,

outrora a aurora que iluminava nossas sombras,

tão forte e ofuscante, que escondiam a penumbra de suas lutas.


É assim que escolhi lembrar:

pelo fim, não,

mas pela luz que você espalhou

em cada pessoa que amou.


E essa luz,

essa sim,

não se extingue.


(Fernando M.)


Hoje faz 34 anos e 14 dias da sua partida. Hoje não tem métrica, quase não tem rima, porque é realmente a saudade que aperta e fica. Obrigado por toda gentileza, pela fantasia de Jaspion, pelos discos, por me mostrar the cure, eu te vejo do outro lado. O homem que portava mais luz, andava sempre nas sombras.

quinta-feira, 23 de outubro de 2025

Orquídea




Singela flor, nascida entre silêncio e fel,

Desfolhas a manhã com tua doçura.

Teu lume acende em terra, céu e alma nua,

E o ar te cerca em brando e manso véu.


Em tuas cores mora o sonho e mora o mel,

No leve aroma a vida se mistura.

És chama em calma, és sopro, és formosura,

Milagre breve em corpo tão fiel.


Olhar-te é ver o amor, em flor, completo,

É ouvir da terra o mais antigo afeto,

Que o tempo em vão não faz calar.


E ao te pensar, flor pura, etérea, fria,

Sinto que em mim renasce a poesia —

E o coração aprende a amar.


(Fernando M.)

quinta-feira, 18 de setembro de 2025

Retrato

Eu sou a ordem milimétrica e insana do caos,

A ferrugem da respiração da criança,

E o olhar no limite vertical do precipício,

Sem mais perfumes para que meus sentidos,

Tenham gostos nas paginas brancas da lembrança,

Tenho alegria no ranger dos dentes

E mórbida inquietação afetuosa,

Meu coração pulsa em azul e preto

No claro tersol do dia e no blecaute

Da noite,

Eu respiro ambos ares,

Numa boca que só aceita um,

Meus gritos seguem,

Minha alegria segue,

A ordem exata,

Da palidez límpida,

De uma manhã

De primavera,

Num sol de quimera.


(Renato Flief)


Em 2005, pedi pra um amigo de internet, que também escrevia poesia me descrever em um poema, uma pena termos perdido contato, mas suas palavras estarão para sempre comigo.

quinta-feira, 28 de agosto de 2025

A montanha e eu

Subi sem mapas,

apenas com o peso do meu corpo

e o silêncio dos meus pensamentos.


O vento me perguntava quem eu era,

a pedra respondia com dureza,

e eu, apenas, seguia.


Cada passo doía,

mas não mais que o que eu deixara lá embaixo.

O cansaço não era o inimigo —

era parte do caminho.


No meio da subida,

o mundo ficou pequeno,

e eu, por um instante,

me senti maior que o medo.


No topo, não houve aplausos,

nem bandeira, nem medalha.

Apenas eu, nessa montanha,

olhando um para o outro,

como dois velhos que finalmente se entendem.


(Fernando M.)

sexta-feira, 1 de agosto de 2025

Ironia da Carne

Morri sem som, sem luz, sem despedida,

voltei como quem acorda do sono,

três longos minutos sem sinal de vida.

a morte durou menos que um sonho.


A vida escorre como um rio,

um animal ferido que se arrasta,

um emaranhado de lágrimas e riso,

um caminheiro seguindo pela estrada.


Eu, que pela morte busquei em toda vida,

que via na existência, sinônimo de fadiga,

retornei ileso, isento de sofrimento.


Ganhei uma nova chance de respirar,

De permanecer em pé, e sem chorar,

manter o fogo aceso, sem cair no esquecimento.


(Fernando M.)


Hoje faz 2 anos desde que tive uma parada cardíaca de 3 minutos durante uma cirurgia, o médico já havia desistido, mas a enfermeira se recusou a me enterrar e se esforçou o máximo que pode pra me trazer de volta, funcionou. Logo eu, que sempre quis ir embora da vida o mais rápido que eu pudesse, continuei aqui, voltei ainda mais resistente do que antes e significantemente menos deprimido do que outrora. Ironias à parte, é engraçado como sempre nos apegamos à vida, mesmo que inconsciente, em minha mente, já havia partido, mas meu corpo, apesar de não ter resistido, reagiu e não desistiu.

terça-feira, 22 de julho de 2025

Samuel

Samuel, às vezes,

um gole de fel te incendeia.

Tal qual o absinto, desce queimando,

como a paixão que em teu peito permeia.


Mas é chama que afaga e destrói,

é beijo que fere e embriaga,

entra doce e sai fatal,

tal qual o canto da sereia.


Teus olhos dançam com o abismo,

entre o desejo e a impaciência,

carregas em ti o perigo

de uma chama que incendeia.


Fez da dor sua melodia,

com cordas que tocam o céu,

ilustram vossa agonia.


És sopro que o vento disfarça,

eco de um sonho que se esvaia,

luz que no éter se agarra.



(Fernando M.)

terça-feira, 8 de julho de 2025

Ela e o Tempo

Falei quando o céu já pendia,

com a luz atravessando de lado.

Nem sombra, nem chama —

só um eco mal acomodado.


Te vi por um fio de instante,

mas o vento empurrou minha voz.

Era breve demais,

era tudo por um triz entre nós.


Não houve resposta. Só vento.

Ou o peso de coisa não dita.

A rejeição que veio depois

parecia já ter sido escrita.


Talvez fosse outra a estação,

outra margem do mesmo rio.

Talvez teus passos seguissem

onde o meu se despede, vazio.


Agora, nem sei se há ponte,

ou se apenas deixei passar.

O que havia em minhas mãos

não quis — ou não quis ficar.


Se couber algo no depois,

se vem, também, não sei de onde.

O que restar, se vier,

só virá quando for — responde.


(Fernando M.)